Nada abalou tanto as estruturas entre Ocidente e Oriente do que as campanhas e "guerras santas" envolvendo os califados orientais e os reinos cristãos europeus do que as Cruzadas. Essas campanhas militares não só moldaram as relações entre cristãos e muçulmanos como também todo o imaginário da Alta Idade Média. Como esse movimento se iniciou? Quais eram seus objetivos? E quais foram suas consequências para o mundo medieval (tanto europeu quanto árabe)?
1- A Batalha de Manzikert:
A Batalha de Manzikert teve um importante papel ao quebrar a resistência bizantina e preparou caminho para o assentamento turco na Anatólia. Foi graças a essa batalha, também, que os bizantinos reconheceram que precisariam de ajuda de seus "irmãos" católicos do Ocidente, para enfrentar as "hordas" turcas e árabes e libertar a Terra Santa da mão dos "pagão" (no caso, os islâmicos).
É bom lembrar que desde o Cisma do Oriente em 1041, quando a fé cristã se dividiu em duas grandes seitas (A Católica Apostólica Romana, com sua "capital" em Roma; e a Igreja Ortodoxa Oriental - que se espalhou pelos territórios do Império Bizantino e pelo Leste Europeu) O Império Bizantino, assim como os reinos católicos da Europa, haviam "cortado" relações (diplomáticas e políticas principalmente) entre eles. Lógico que muitos bizantinos viram com maus olhos a decisão de pedir ajuda aos católicos para ajudá-los na guerra contra os turcos e árabes.
2- O Concílio de Clermont:
O Concílio de Clermont fora organizado pelo próprio Pontificado do papa Urbano II, para resolver alguns assuntos que "abalavam" um pouco a estrutura de poder na Europa. Entre esses assuntos estava o caso de adultério entre o rei da França FIlipe I e a esposa de Fulque IV, senhor de Anjou, Bertrande de Montfort.
O Concílio de Clermont foi um sínodo, uma reunião religiosa cristã, que tinha por finalidade principal estabelecer ainda mais o poder papal sobre as monarquias europeias e aumentar a influência do cristianismo na Europa e, principalmente, na Terra Santa (como veremos a seguir).
Urbano II queria aproveitar o Concílio (que havia atraído milhares de pessoas, entre plebeus e nobres) e difundir a principal mensagem que ele tinha. Como cita Kostick (2010, pág. 15):
"Contra o impressionante plano de fundo do Puy-de-Dôme, um vulcão adormecido, o papa transmitiu sua mensagem à multidão, que, em silêncio e atenta, se esforçava para ouvir cada palavra. 'Chegou a hora de ajudar os irmãos cristãos no Oriente, cujo sofrimento nas mãos dos sarracenos cresce com o passar dos dias', disse o papa. Havia chegado a hora, portanto, de os cristãos cessarem o estado de beligerância uns contra os outros. Em vez disso, deviam investir na bravura militar contra os Inimigos de Deus. (...) Para aqueles que fossem pecadores, não havia melhor maneira de obter remissão da sua penitência do que se juntar ao exército cristão em sua marcha para o Oriente. 'Essa é a vontade de Deus, Essa é a vontade de Deus', urrou a multidão em resposta (...)."
Maria Pedrero-Sánchez também cita esse discurso de Urbano II no Concílio de Clermont em seu livro "Histórias da Idade Média - textos e testemunhas" (2000, pág. 83):
"Considerando as exigências do tempo presente, eu, Urbano, tendo, pela misericórdia de Deus a tiara Pontifical, (...), venho até vós, servidores de Deus, como mensageiro para desvendar-vos o mandato divino [...] é urgente levar com diligência aos nossos irmãos do Oriente a ajuda prometida e tão necessária no momento presente. Os turcos e os árabes atacaram e avançaram pelo território da România até a parte do Mediterrâneo chamada o Braço de São Jorge, e penetram mais a cada dia nos países cristãos; eles os venceram sete vezes em batalha, matando e fazendo grande número de cativos, destruindo igrejas e devastando o reino. Se vós deixardes isto sem resistência, estenderão os seus exércitos ainda mais sobre os fiéis servidores de Deus." (Foucher de Cartres. In: Pernoud, R. "Les Cruzades". Paris: s.n., 1960. p. 17-8)
Porém esse chamado às armas pela cristandade teve um efeito que nem Urbano II nem os nobres europeus que estavam em Clermont esperavam. O mundo estava em "polvoroso", com o anúncio papal. Como destaca Kostick (2010, pág. 16):
"A mensagem que Clermont havia deixado, que começava a se espalhar rapidamente pela Europa, ignorava tudo menos as ideias centrais expressas por Urbano: de que devia haver uma expedição a Jerusalém com um exército cristão maior do que qualquer outro, e aqueles que se juntassem a ele receberiam uma recompensa celeste. O papa - tentando impedir o entusiasmo popular pela missão distorcesse a concepção que tinha sobre ela (de que deveriam ser exércitos regulares, liderados por nobres e padres eruditos, sábios e aristocratas) - enviou várias cartas explicando o propósito da peregrinação armada, como também definindo quais categorias de pessoas deveriam participar."
Porém, como continua explicando Kostick, Urbano colocou forças sociais em movimento mais fortes do que ele ou os nobres poderiam controlar, e as cartas de nada adiantaram. Toda classe social achava que era elegível para participar da Jornada, essa "peregrinação armada".
Muitos autonomeados pregadores começaram a viajar pela Europa juntando recrutas para a jornada divulgando sua própria versão da mensagem da Cruzada, que nada ajudou nos planos do Papa.
3- Pedro, o Eremita, e a Cruzada dos Pobres.
Uma dessas "Vozes de Deus" que se espalharam pela Europa foi um eremita chamado Pedro. Pedro tinham um alto poder de persuasão e, assim como muitos outros frades, padres e monges que andavam pela Europa, ele utilizou dessa oratória sagaz para angariar seguidores para ir a Terra Santa e libertá-la das garras dos infiéis. Suas palavras, oratória e verbosidade eram tão poderosas que ele conseguiu juntar o maior exército cristão que a História já vira, maior até do que o exército profissional que estava sendo montado pelos grandes senhores franceses que eram os "líderes oficiais" da Cruzada.
No curso de sua peregrinação pela França, para angariar seguidores, Pedro conseguiu juntar um exército fenomenal de cerda de 40 mil pessoas (em sua maioria esmagadora homens e mulheres plebeus, infantes mal equipados e apenas 500 cavaleiros montados). Como destaca Kostick (2010, pág. 18):
"(...), era uma proeza extraordinária o fato de um eremita até então desconhecido reunir o maior exército da cristandade. Esse fato demonstrava, para muitas pessoas, que a vontade divina estava se manifestando por meio do franzino, mas fervoroso, pregador. Para os participantes em si, seu 'status' inferior era um sinal de orgulho: os humildes tinham mais probabilidade de ganhar a aprovação divina que os mais abastados e orgulhosos"
Porém esse fervor religioso já mostrava seu "lado negro" antes mesmo de chegar á Terra Santa. Os fervorosos seguidores de Pedro e outros monges fanáticos eram "recrutados" pelos senhores franceses e bávaros ao longo de sua caminhada para Jerusalém (que era de aproximadamente 3.200 quilômetros de péssimas estradas e ermos selvagens da Europa, Anatólia e Levante) para perseguir hereges e judeus em suas terras.
"Entre os contingentes que se formaram na esteira da passagem de Gualtério e Pedro pela Lotaríngia, pelo Reino Franco e Bavária, estavam pessoas que converteram as paixões inflamadas pelo eremita em guerra contra a população judaica local. A comunidade judaica de Colônia foi surpreendida por um ataque repentino em 29 de maio de 1096; (...) Em Mainz, um poderoso nobre local, conde Emicho, (...), esperaram a chegada da massa de peregrinos para liderar uma investida semelhante contra a população judaica (...). Não é de admirar que, com a chegada da notícia desses massacres ao Oriente Médio, a população judaica de Jerusalém tenha decidido lutar lado a lado com a população muçulmana contra o exército da Cruzada." (KOSTICK, 2010, pág. 19)
Essa massa de camponeses maltrapilhos, chegaram primeiro aos territórios bizantinos e árabes, causando uma péssima impressão tanto para com os anfitriões ortodoxos quanto para o inimigo sarraceno e turco. Isabelle Somma, em seu artigo "As invasões vistas pelos árabes", destaca uma citação de um cronista sírio:
"'Glorioso seja Alá, o criador e autor de todas as coisas! Qualquer um que tenha tido conhecimento do que diz respeito aos 'franj' (francos) apenas pode glorificar e santificar Alá, o Todo-Poderoso, pois neles se vêem animais que são superiores em coragem e fervor para lutar, e em nada mais, assim como bestas sãos superiores em força e agressividade.' Esse trecho de Ossama Ibn Mounkidh, diplomata e cronista sírio que em sua autobiografia fez várias descrições dos cruzados, resume a opinião dos árabes muçulmanos sobre os 'franj' - os cruzados que partiram do Ocidente no século XI para conquistar a Terra Santa" (2005, pág. 43)
Em 1096, mais ou menos 100 mil pessoas (entre plebeus, nobres, soldados e cavaleiros) se uniram para invadir a Terra Santa e libertá-la dos infiéis. A "peregrinação armada" durou 3 anos, percorreu 3.200 km entre a Europa e a Terra Santa. Desses 100 mil homens e mulheres iniciais só sobraram 20 mil quando o exército cristão, comandado por Godofredo de Bulhões e Roberto da Normandia, iniciou o cerco á Jerusalém. Isso de deve ao caso que a Cruzada do Povo, a comandada por eremitas e fanáticos como Pedro, sem nenhum conhecimento de estratégia militar e mal equipados, acabaram sucumbindo contra a resistência turca e árabe.
4- A Cruzada chega à Terra Santa - A Queda e o Massacre de Jerusalém
Depois de mais de 3 mil quilômetros, 3 anos de marcha, de incessantes batalhas (contra judeus indefesos na Europa e contra árabes e turcos nas fronteiras do Império Bizantino), o Exército Cristão chega à Jerusalém.
O corpo militar principal da Cruzada, conhecido como "A Cruzada dos Nobres", ou "A Cruzada dos Barões", inicialmente era formado por 5 grandes líderes militares:
- Raimundo IV de Toulouse, talvez o mais carismático líder no início da expedição, já tinha participado da Reconquista e era acompanhado pelos cavaleiros da Provença e pelo legado papal Ademar;
- Boemundo de Taranto, líder dos normandos do sul da península Itálica, velhos inimigos do Império Bizantino, acompanhado pelo seu sobrinho Tancredo de Altavila;
- Godofredo de Bulhão trazia um exército da Lorena, juntamente com os seus irmãos Eustácio III de Bolonha e Balduíno de Bolonha, e foi acompanhado por Roberto II da Flandres e os seus flamengos;
- Hugo I de Vermandois, irmão de Filipe I da França, portador do estandarte papal ;
- Roberto II da Normandia (irmão do rei Guilherme II da Inglaterra) e Estêvão de Blois (neto de Guilherme I de Inglaterra), traziam o contingente do norte da França.
Matheus Santos da Silveira
Cavaleiros cristãos atacando posições muçulmanas na Terra Santa
A ideia das cruzadas pode ser traçada até 4 situações importantes: 1- A Batalha de Manzikert, em 1071; 2- o Concílio de Clermont, França, em 1095; 3- Pedro, o Eremita e a Cruzada dos Pobres; e 4- Godofredo de Bulhões, Roberto da Normandia e o massacre de Jerusalém.
Mapa (em francês) mostrando as rotas de todas as 8 cruzadas (Repdorução/Visões do Mundo)
1- A Batalha de Manzikert:
Gravura francesa do século XV representando o imperador Romano IV na Batalha de Manzikert (Reprodução/Wikicommons)
A Batatalha de Manzikert foi travada entre o Império Bizantino e os turcos seljúcidas liderados por Alp Arslan, em 26 de Agosto de 1071, perto da cidadezinha de Manzikert (atualmente Malazgist, na Província de Muş, Turquia). Essa batalha resultou em uma das decisivas derrotas do Império Bizantino e na captura do imperador Romano IV Diógenes. Ao voltar para Constantinopla, Romano foi cegado pelos seus conterrâneos e exilado na ilha de Prote (atuaql Kinaliada), no Mar de Mármara.
A Batalha de Manzikert teve um importante papel ao quebrar a resistência bizantina e preparou caminho para o assentamento turco na Anatólia. Foi graças a essa batalha, também, que os bizantinos reconheceram que precisariam de ajuda de seus "irmãos" católicos do Ocidente, para enfrentar as "hordas" turcas e árabes e libertar a Terra Santa da mão dos "pagão" (no caso, os islâmicos).
É bom lembrar que desde o Cisma do Oriente em 1041, quando a fé cristã se dividiu em duas grandes seitas (A Católica Apostólica Romana, com sua "capital" em Roma; e a Igreja Ortodoxa Oriental - que se espalhou pelos territórios do Império Bizantino e pelo Leste Europeu) O Império Bizantino, assim como os reinos católicos da Europa, haviam "cortado" relações (diplomáticas e políticas principalmente) entre eles. Lógico que muitos bizantinos viram com maus olhos a decisão de pedir ajuda aos católicos para ajudá-los na guerra contra os turcos e árabes.
2- O Concílio de Clermont:
Gravura do século XIV destacando o Papa (ao centro, em um tablado de madeira) discusando em Clermont para os senhores europeus (Godofredo de Bulhões está à cavalo, atrás do Papa) (Reprodução/wikicommons)
O Concílio de Clermont fora organizado pelo próprio Pontificado do papa Urbano II, para resolver alguns assuntos que "abalavam" um pouco a estrutura de poder na Europa. Entre esses assuntos estava o caso de adultério entre o rei da França FIlipe I e a esposa de Fulque IV, senhor de Anjou, Bertrande de Montfort.
O Concílio de Clermont foi um sínodo, uma reunião religiosa cristã, que tinha por finalidade principal estabelecer ainda mais o poder papal sobre as monarquias europeias e aumentar a influência do cristianismo na Europa e, principalmente, na Terra Santa (como veremos a seguir).
Concílio de Clermont, Papa Urbano discursa para os nobres, frades, monges e arcebispos dentro da catedral de Clermont, antes de se anunciar ao público no lado de fora (Sébastien Mamerot, Les passages d'outremer, 1474)
Urbano II queria aproveitar o Concílio (que havia atraído milhares de pessoas, entre plebeus e nobres) e difundir a principal mensagem que ele tinha. Como cita Kostick (2010, pág. 15):
"Contra o impressionante plano de fundo do Puy-de-Dôme, um vulcão adormecido, o papa transmitiu sua mensagem à multidão, que, em silêncio e atenta, se esforçava para ouvir cada palavra. 'Chegou a hora de ajudar os irmãos cristãos no Oriente, cujo sofrimento nas mãos dos sarracenos cresce com o passar dos dias', disse o papa. Havia chegado a hora, portanto, de os cristãos cessarem o estado de beligerância uns contra os outros. Em vez disso, deviam investir na bravura militar contra os Inimigos de Deus. (...) Para aqueles que fossem pecadores, não havia melhor maneira de obter remissão da sua penitência do que se juntar ao exército cristão em sua marcha para o Oriente. 'Essa é a vontade de Deus, Essa é a vontade de Deus', urrou a multidão em resposta (...)."
Maria Pedrero-Sánchez também cita esse discurso de Urbano II no Concílio de Clermont em seu livro "Histórias da Idade Média - textos e testemunhas" (2000, pág. 83):
"Considerando as exigências do tempo presente, eu, Urbano, tendo, pela misericórdia de Deus a tiara Pontifical, (...), venho até vós, servidores de Deus, como mensageiro para desvendar-vos o mandato divino [...] é urgente levar com diligência aos nossos irmãos do Oriente a ajuda prometida e tão necessária no momento presente. Os turcos e os árabes atacaram e avançaram pelo território da România até a parte do Mediterrâneo chamada o Braço de São Jorge, e penetram mais a cada dia nos países cristãos; eles os venceram sete vezes em batalha, matando e fazendo grande número de cativos, destruindo igrejas e devastando o reino. Se vós deixardes isto sem resistência, estenderão os seus exércitos ainda mais sobre os fiéis servidores de Deus." (Foucher de Cartres. In: Pernoud, R. "Les Cruzades". Paris: s.n., 1960. p. 17-8)
Porém esse chamado às armas pela cristandade teve um efeito que nem Urbano II nem os nobres europeus que estavam em Clermont esperavam. O mundo estava em "polvoroso", com o anúncio papal. Como destaca Kostick (2010, pág. 16):
"A mensagem que Clermont havia deixado, que começava a se espalhar rapidamente pela Europa, ignorava tudo menos as ideias centrais expressas por Urbano: de que devia haver uma expedição a Jerusalém com um exército cristão maior do que qualquer outro, e aqueles que se juntassem a ele receberiam uma recompensa celeste. O papa - tentando impedir o entusiasmo popular pela missão distorcesse a concepção que tinha sobre ela (de que deveriam ser exércitos regulares, liderados por nobres e padres eruditos, sábios e aristocratas) - enviou várias cartas explicando o propósito da peregrinação armada, como também definindo quais categorias de pessoas deveriam participar."
Gravura de Urbano II (de pé) pregando no lado de fora da catedral de Clermont, conclamando a Primeira Cruzada aos espectadores que não estavam dentro da igreja. (Reprodução/Wikicommons)
Porém, como continua explicando Kostick, Urbano colocou forças sociais em movimento mais fortes do que ele ou os nobres poderiam controlar, e as cartas de nada adiantaram. Toda classe social achava que era elegível para participar da Jornada, essa "peregrinação armada".
Muitos autonomeados pregadores começaram a viajar pela Europa juntando recrutas para a jornada divulgando sua própria versão da mensagem da Cruzada, que nada ajudou nos planos do Papa.
3- Pedro, o Eremita, e a Cruzada dos Pobres.
Uma dessas "Vozes de Deus" que se espalharam pela Europa foi um eremita chamado Pedro. Pedro tinham um alto poder de persuasão e, assim como muitos outros frades, padres e monges que andavam pela Europa, ele utilizou dessa oratória sagaz para angariar seguidores para ir a Terra Santa e libertá-la das garras dos infiéis. Suas palavras, oratória e verbosidade eram tão poderosas que ele conseguiu juntar o maior exército cristão que a História já vira, maior até do que o exército profissional que estava sendo montado pelos grandes senhores franceses que eram os "líderes oficiais" da Cruzada.
Estátua de Pedro, o Eremita (mais conhecido como São Pedro de Amiens), localizada ao lado da Catedral de Amiens, na França, feita por Gédéon de Forceville (1854) (Vassil-2008/Wikicommons)
No curso de sua peregrinação pela França, para angariar seguidores, Pedro conseguiu juntar um exército fenomenal de cerda de 40 mil pessoas (em sua maioria esmagadora homens e mulheres plebeus, infantes mal equipados e apenas 500 cavaleiros montados). Como destaca Kostick (2010, pág. 18):
"(...), era uma proeza extraordinária o fato de um eremita até então desconhecido reunir o maior exército da cristandade. Esse fato demonstrava, para muitas pessoas, que a vontade divina estava se manifestando por meio do franzino, mas fervoroso, pregador. Para os participantes em si, seu 'status' inferior era um sinal de orgulho: os humildes tinham mais probabilidade de ganhar a aprovação divina que os mais abastados e orgulhosos"
Pedro, o eremita, conclama os fiéis para seguí-lo até a Terra Santa (gravura de Gustave Doré - 1832-1883)
Porém esse fervor religioso já mostrava seu "lado negro" antes mesmo de chegar á Terra Santa. Os fervorosos seguidores de Pedro e outros monges fanáticos eram "recrutados" pelos senhores franceses e bávaros ao longo de sua caminhada para Jerusalém (que era de aproximadamente 3.200 quilômetros de péssimas estradas e ermos selvagens da Europa, Anatólia e Levante) para perseguir hereges e judeus em suas terras.
"Entre os contingentes que se formaram na esteira da passagem de Gualtério e Pedro pela Lotaríngia, pelo Reino Franco e Bavária, estavam pessoas que converteram as paixões inflamadas pelo eremita em guerra contra a população judaica local. A comunidade judaica de Colônia foi surpreendida por um ataque repentino em 29 de maio de 1096; (...) Em Mainz, um poderoso nobre local, conde Emicho, (...), esperaram a chegada da massa de peregrinos para liderar uma investida semelhante contra a população judaica (...). Não é de admirar que, com a chegada da notícia desses massacres ao Oriente Médio, a população judaica de Jerusalém tenha decidido lutar lado a lado com a população muçulmana contra o exército da Cruzada." (KOSTICK, 2010, pág. 19)
Pedro, o eremita, novamente pregando para seus seguidores e para alguns outros soldados de outro grupo que também seguia para a Terra Santa gravura de Gustave Doré - 1832-1883)
Essa massa de camponeses maltrapilhos, chegaram primeiro aos territórios bizantinos e árabes, causando uma péssima impressão tanto para com os anfitriões ortodoxos quanto para o inimigo sarraceno e turco. Isabelle Somma, em seu artigo "As invasões vistas pelos árabes", destaca uma citação de um cronista sírio:
"'Glorioso seja Alá, o criador e autor de todas as coisas! Qualquer um que tenha tido conhecimento do que diz respeito aos 'franj' (francos) apenas pode glorificar e santificar Alá, o Todo-Poderoso, pois neles se vêem animais que são superiores em coragem e fervor para lutar, e em nada mais, assim como bestas sãos superiores em força e agressividade.' Esse trecho de Ossama Ibn Mounkidh, diplomata e cronista sírio que em sua autobiografia fez várias descrições dos cruzados, resume a opinião dos árabes muçulmanos sobre os 'franj' - os cruzados que partiram do Ocidente no século XI para conquistar a Terra Santa" (2005, pág. 43)
Em 1096, mais ou menos 100 mil pessoas (entre plebeus, nobres, soldados e cavaleiros) se uniram para invadir a Terra Santa e libertá-la dos infiéis. A "peregrinação armada" durou 3 anos, percorreu 3.200 km entre a Europa e a Terra Santa. Desses 100 mil homens e mulheres iniciais só sobraram 20 mil quando o exército cristão, comandado por Godofredo de Bulhões e Roberto da Normandia, iniciou o cerco á Jerusalém. Isso de deve ao caso que a Cruzada do Povo, a comandada por eremitas e fanáticos como Pedro, sem nenhum conhecimento de estratégia militar e mal equipados, acabaram sucumbindo contra a resistência turca e árabe.
Gravura francesa ilustrando o terrível fim da cruzada popular (Francuska Biblioteka Narodowa - 1474 - via Wikicommons)
4- A Cruzada chega à Terra Santa - A Queda e o Massacre de Jerusalém
Depois de mais de 3 mil quilômetros, 3 anos de marcha, de incessantes batalhas (contra judeus indefesos na Europa e contra árabes e turcos nas fronteiras do Império Bizantino), o Exército Cristão chega à Jerusalém.
Os líderes nobres da Primeira Cruzada, os que chefiaram as principais campanhas militares com seu exército profissional. Nesta gravura estão (da esquerda para a direita): Godofredo de Bulhões, Hugo I de Vermandois, Roberto II da Normandia e Raimundo IV de Toulose (Gravura de Alphonse-Marie-Adolphe de Neuville (1835 - 1885)
O corpo militar principal da Cruzada, conhecido como "A Cruzada dos Nobres", ou "A Cruzada dos Barões", inicialmente era formado por 5 grandes líderes militares:
- Raimundo IV de Toulouse, talvez o mais carismático líder no início da expedição, já tinha participado da Reconquista e era acompanhado pelos cavaleiros da Provença e pelo legado papal Ademar;
- Boemundo de Taranto, líder dos normandos do sul da península Itálica, velhos inimigos do Império Bizantino, acompanhado pelo seu sobrinho Tancredo de Altavila;
- Godofredo de Bulhão trazia um exército da Lorena, juntamente com os seus irmãos Eustácio III de Bolonha e Balduíno de Bolonha, e foi acompanhado por Roberto II da Flandres e os seus flamengos;
- Hugo I de Vermandois, irmão de Filipe I da França, portador do estandarte papal ;
- Roberto II da Normandia (irmão do rei Guilherme II da Inglaterra) e Estêvão de Blois (neto de Guilherme I de Inglaterra), traziam o contingente do norte da França.
Depois da grande marcha pela Europa, os cruzados chegaram à Constantinopla, sendo recebidos com as caras não muito agradecidas dos bizantinos, já que tiveram de aturar a turba maltrapilha de Pedro, o eremita, meses antes.
Gravura mostrando Godofredo de Bulhões e os outros líderes cruzados falando com o imperador Bizantino, Aleixo I Comnemo (Colporteur - 1891 - via Wikicommon)
A rota principal dos cruzados era pelo litoral, conquistando a maior quantidade possível de fortalezas e castelos árabes pelo caminho. Assim, cercos às cidades (que duravam meses à fio) e batalhas contra as forças árabes eram inevitáveis. Destaque para o Cerco às cidades de Antioquia, antiga cidade bizantina que havia caído em mãos árabes no século VIII, e Edessa, na fronteira sul do território dos turcos seljúcidas.
Apesar de lutarem unidos pela cristandade, as rixas de quem ficaria com qual pedaço de terra ou tesouros encontrados sempre acompanhou os nobres e cavaleiros que se aventuraram nessa peregrinação armada, principalmente após a queda de duas grandes cidades como Edessa e Antioquia.
Gravura ilustrando o massacre de Antioquia, onde a população judaica e muçulmana fora perseguida e morta pelos cruzados. Um prelúdio para o que aconteceria à Jerusalém. (Gustave Doré - 1853 - 1883)
Em dezembro de 1098 - janeiro de 1099, Roberto II da Normandia e Tancredo de Altavila tornaram-se vassalos do mais poderoso e rico Raimundo IV de Toulouse. Godofredo de Bulhão, apoiado pelo seu irmão Balduíno de Edessa, recusou-se.
Em 13 de janeiro, Raimundo iniciou a marcha em direção ao sul, descalço e vestido como um peregrino, percorrendo a costa do mar Mediterrâneo. Os cruzados enfrentaram pouca resistência, uma vez que os pouco poderosos governantes muçulmanos locais preferiram comprar uma paz com provisões em vez de lutar. Também é provável que estes, pertencentes ao ramo sunita do Islã, preferissem o controlo de estrangeiros ao governo xiita dos fatímidas egípcios.
Entre Antioquia e Jerusalém encontrava-se o emirado de Trípoli. Em 14 de fevereiro o conde de Toulouse iniciou o cerco de Arqa, uma cidade dentro do emirado. Provavelmente, uma das suas intenções seria fundar um território independente em Trípoli, que limitasse a capacidade de Boemundo expandir o seu principado para sul. Mas o cerco demorou mais do que o previsto e, apesar de algumas conquistas menores no local, o atraso da cruzada para Jerusalém fez-lhe perder muito do apoio que ganhara em Antioquia. Percebe-se então a briga eminente por domínio de terras e feudos que antes eram árabes.
Gravura ilustrando Balduíno de Bulhões, irmão de Godofredo de Bulhões, entrando na cidade de Edessa, fundando o Condado de Edessa, no extremo norte do domínio latino no Oriente Médio, e perigosamente perto dos domínios turcos (J.Robert-Fleury - 1840)
A cruzada prosseguiu até seu objetivo final, Jerusalém. Em 13 de maio, ao longo da região costeira, passando por Beirute no dia 19 e Tiro em 23 de Maio. Em Jaffa abandonaram a costa e em 3 de Junho alcançaram Ramala, que tinha sido abandonada pelos seus habitantes. Após as conquistas iniciais na região da Terra Santa, o exército cristão ficara reduzido a cerca de 1.500 cavaleiros e 20.000 soldados de infantaria, carentes de armas e provisões.E foi esse contingente, reduzido e com poucos suprimentos, que chegou à Jerusalém, em 11 de Junho de 1099. Assim iniciou-se o cerco de Jerusalém.
O primeiro assalto direto às muralhas, apenas dois dias depois que o exército cruzado chegou às cercanias da cidade, foi um fracasso, e à medida que homens e animais morriam de fome e de sede, os cruzados sabiam que o tempo estava contra o seu exército. Pouco depois deste ataque, uma frota da República de Génova, liderada por Guilherme Embriaco, chegou ao porto de Jaffa. Os cristãos puderam então abastecer-se parcialmente e desmantelar os navios, usando a madeira destes e a apanhada em Samaria para construir torres de assalto, feitas de madeira e aço.
Gravura ilustrando o exército cruzado cercando e atacando Jerusalém (autor desconhecido/Reprodução - Wikicommons)
No fim do mês de junho, depois de mais ataques fracassados, surgiu a notícia do avanço de um exército fatímida do Egito, para salvar Jerusalém do cerco, que durava quase um mês. Face a uma tarefa aparentemente impossível, um padre chamado Pedro Desidério ofereceu uma solução de fé: afirmou que uma visão divina lhe tinha dado instruções para que os cristãos jejuassem durante três dias e depois marchassem descalços em procissão ao redor das muralhas da cidade; estas cairiam em nove dias, da mesma forma que a Bíblia relata ter acontecido com Josué no cerco de Jericó.
Na noite de 14 de julho os cruzados começaram a usar as torres de assalto para se aproximarem das muralhas. Na manhã do 15 de julho (uma sexta-feira santa, sete dias depois da procissão), a torre de Godofredo de Bulhão alcançou a sua seção do muro, na porta do canto nordeste.
Vários nobres reclamariam a honra de terem sido os primeiros a penetrar em Jerusalém. Segundo uma das crónicas da época, a exata sequência terá sido Letoldo e Gilberto de Tournai, depois Godofredo de Bulhão e o seu irmão Eustácio III de Bolonha, Tancredo de Altavila e os seus homens. Outros cruzados entraram pela antiga entrada dos peregrinos. O avanço da torre de Raimundo de Saint-Gilles foi travado por uma vala, mas assim que outros cruzados foram invadindo a cidade, o guarda da porta assediada rendeu-se ao conde de Toulouse. Assim, os cruzados tomaram Jerusalém e, com isso, um verdadeiro inferno foi libertado sobre a cidade "santa".
Gravura mostrando a história de Jerusalém. Da esquerda para a direita, de cima para baixo: 1- Jesus em Jerusalém; 2- A Destruição do Templo Judeu; 3- decapitação dos judeus; 4- a Tomada de Jerusalém pelos cruzados e o "rio de sangue" que saiu da cidade (Reprodução/Wikicommons)
Foram cinco semanas de cerco à sagrada cidade, que culminaram com a vitória final dos cruzados, em 15 de julho de 1099, e com o grande massacre de civis (em sua maioria judeus e muçulmanos). Guiada pelo sonho de uma Jerusalém celestial, uma multidão de cristãos (soldados, infantes e plebeus mal vestidos e mal armados) invadiram as muralhas da cidade santa, deixando um rastro de destruição, morte e horror. Ao fim dessa batalha, aproximadamente 100 mil pessoas perderam a vida dentro das muralhas de Jerusalém. Somma destaca em seu texto:
"A tomada de Jerusalém, em 1099, ilustra bem esse sentimento (de que os cruzados traziam a barbárie, a intolerância e a morte). para os cruzados, a batalha pela cidade era um autêntico ato de fé. Eles acreditavam que ver anjos que os guiavam e, em seguida, combatiam ao seu lado. (...). Até queimaram sinagogas e mesquitas, com fiéis muçulmanos e judeus ainda dentro. (...). Até então a dinastia Fatímida descendentes de Fátima, filha de Maomé, e de Ali, quarto califa (xiitas), estavam perdidos numa crise interna. O caos político no Oriente muçulmano vinha de longa data. (...). Os relatos do que estavam acontecendo nas terras invadidas pelos cristãos ocidentais, no entanto, começaram a provocar revoltas entre os muçulmanos. Logo depois da queda da Cidade Santa, um orador não identificado fez um discurso em uma mesquita de Bagdá (governada pelos sunitas): 'Vocês ousam vacilar à sombra de uma vida frívola como a de uma flor no jardim. Enquanto seus irmãos sírios têm por única morada o lombo dos camelos ou as entranhas dos abutres? Quanto sangue derramado!', descreve Amim Maalouf, cristão de origem libanesa em seu clássico 'As Cruzadas vistas pelos Árabes'".
Assim, com o massacre de Jerusalém, com os cristãos se espalhando pelo Oriente Médio e com a união de outrora facções árabes rivais frente à um inimigo em comum, o Mundo via nascer uma página negra na História Mundial, um período em que a intolerância religiosa subiu a níveis alarmantes e nunca antes vistos, talvez para nunca mais voltar ao que era, antes das Cruzadas.
Fontes:
GOMES, Beto. Em Busca da Purificação. Coleção Grandes Guerras, vol. V - "As Cruzadas", p. 12-15. Ed. Abril, Abril de 2005.
PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média - Textos e Testemunhas. São Paulo, 2000. Ed. UNESP.
SOMMA, Isabelle. As invasões vistas pelos Árabes. Coleção Grandes Guerras, vol. V - "As Cruzadas", p. 43-45. Ed. Abril, Abril de 2005.
CONOR, Kostick. 1099 - A Primeira Cruzada e a dramática conquista de Jerusalém. São Paulo, 2010. Edições Rosari.
GAUDET, Judie. 1001 Dias que Abalaram o Mundo. Rio de Janeiro, 2009, Ed. Sextante.
GOMES, Beto. Em Busca da Purificação. Coleção Grandes Guerras, vol. V - "As Cruzadas", p. 12-15. Ed. Abril, Abril de 2005.
PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média - Textos e Testemunhas. São Paulo, 2000. Ed. UNESP.
SOMMA, Isabelle. As invasões vistas pelos Árabes. Coleção Grandes Guerras, vol. V - "As Cruzadas", p. 43-45. Ed. Abril, Abril de 2005.
Professor de História formado pela PUCPR
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